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segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O Mito da Modernidade. 7 Meu nome não é Jhonny. Labeling Aproach


Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):

O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!

O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.


SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.


    1. MEU NOME NÃO É JOHNNY. LABELING APROACH.

É que na profissão de ladrão
Injustiça e preconceito
Dá chuva pra inundação
Para alguns fama e respeito
Pra outros a maldição
Pois o tamanho do roubo
Faz a honra do ladrão.1

Há algo compartilhado entre todas as teorias apresentadas até aqui. Elas concentram as suas lentes nas pessoas caracterizadas como delinquentes. Observam os seus genes, as suas casas, os seus meios de subsistência ou os seus valores culturais. Em nenhum momento se prestou atenção nas reações aos delitos, ou mesmo na definição do que é crime. Este é o giro proposto pelo Labeling Approach2, cujo marco mais reconhecido é a obra Outsiders, de Howard S. Becker.
Os interacionistas3 notam que a definição das condutas desviantes varia no tempo e no espaço. O que foi lícito ontem não é lícito hoje e vice-versa. Uma mesma prática, ainda que violenta, é tida por legítima pela sociedade em determinadas circunstâncias e ilegítima em outras. Não haveria, portanto, como buscar uma característica comum entre os desviantes, pelo fato de praticar determinadas condutas. João Ubaldo Ribeiro descreveu com maestria a perplexidade pela transição das qualificações das condutas, ao longo do tempo.
Mas a sabedoria dessas questões do Bem e do Mal foi posta em evidência e sobejamente provada quando tudo começou a acontecer conforme o previsto na doutrina. Antes da Redução, a aldeia era composta de gente muito ignorante, que nem sequer tinha uma lista pequena para o Bem e para o Mal e, na realidade, nem dispunha de palavras para designar essas duas coisas tão importantes. Depois da redução, viu-se que alguns eram maus e outros eram bons, apenas antes não se sabia. Mulher má não quer ir à doutrina, quer andar nua, não quer que o padre pegue na cabeça do filho e lhe besunta a testa de banha esverdeada, dizendo palavras mágicas que podem para sempre endoidecer a criança. Feio, feio, mulher má.4

7.1. Status Desviante.

Há casos em que, dentro da mesma sociedade, pessoas cometem determinados delitos e não são apanhadas, enquanto algumas praticam os mesmos atos e o são. (cifras ocultas ou cifras negras). Por vezes, pessoas capturadas pelo mesmo delito possuem destinos completamente distintos. Umas são condenadas e demonizadas. Outras não são nem mesmo acusadas, são absolvidas, ou recebem sanções brandas. Existem ainda situações em que alguém é acusado injustamente e já recebe o ódio da sociedade, mesmo antes do fim do processo. O que une, portanto, as pessoas consideradas criminosas não é o que fizeram ou deixaram de fazer, mas o rótulo que receberam.
Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas a conseqüência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal.5

As teorias etiológicas (que são todas as anteriores) buscam as causas predominantes para os delitos. Procuram a fórmula para prever a prática de crimes isolando as variáveis escolhidas, seja a pobreza ou a predisposição genética. Os interacionistas sugerem que não há como isolar nenhum fator. É uma sequência de fatos e atos que levam uma pessoa a se comportar (ou não) de forma desviante, a repetir este comportamento ou a deixar de repeti-lo.
O modelo sequencial leva ao conceito de carreira (o trânsito de uma posição a outra, dentro de um sistema) e da sua contingência (fatores que influem ou condicionam este deslocamento)6. O modo de ingressar na carreira desviante é a realização dos desvios, de modo intencional ou não.
Várias razões podem levar à estabilização da carreira, mas a principal seria o aprendizado social dos motivos e interesses desviantes7. O passo mais decisivo para estimular este passo é ser rotulado, por ser apanhado, ou por auto-definição. Assim, há a assunção de uma nova auto-imagem e uma nova identidade pública.
A partir da rotulação, a história de uma pessoa passa a ser a história do rótulo. Sua vida é interpretada retrospectivamente e o seu futuro projetado a partir deste ato. É assim que os outros a vêem. É assim que ela se vê. Perde-se a característica de jovem ou velho, de alegre ou triste, de pobre ou rico. Desaparece a criança e fica apenas o ladrão, o capitão da areia.
Mas os dois desabaram pela rua Chile, porque o guarda já estava quase junto a eles. O homem olhava meio sem compreender quando ouviu a voz do guarda.
- Lhe roubaram alguma coisa, senhor?
- Não. Por quê?
- Porque como aqueles malandrins estavam aqui junto do senhor...
-Eram duas crianças... Por sinal que uma com maravilhosa inclinação para a pintura.
-São ladrões- retrucou o guarda. - São dos Capitães da Areia.
(...)
Como não achou coisa melhor com que limpar, fez do cartão do homem um palito e o enfiou na piteira. Quando terminou, jogou o cartão na rua. Pedro Bala perguntou:
- Por que tu não guarda?
- Pra que quero?- e o Professor riu, Pedro Bala riu também e por um momento suas gargalhadas encheram a rua. Riam assim sem motivo, pelo prazer de rir.
- O homem parece que era bem capaz de ajudar a tu ser um pintor...- apanhou o cartão e leu o nome do homem. – Tu devia guardar. Quem sabe?
Professor baixou a cabeça:
- Deixa de ser besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão... Quem é que quer saber da gente? Quem? Só ladrão, só ladrão...– e sua voz se elevava, agora gritava com ódio.8

Existem, entretanto, diferentes status, com características principais e auxiliares9, que acompanham os rótulos. Isto quer dizer que cada posição social é acompanhada de traços não diretamente relacionados com ela, mas que compõem o seu estereótipo. O universitário é quem estuda em uma universidade (status principal), mas espera-se que seja branco, rico e educado (status auxiliares). O traficante de drogas é quem vende drogas ilícitas (status principal), mas espera-se que seja negro, pobre e violento (status auxiliares). Por um lado, o status principal, faz presumir a existência dos seus auxiliares. Por outro, é mais fácil ser estigmatizado com sucesso quando mais traços secundários se apresentam.
Além disto, é preciso entender que alguns status tendem a predominar sobre outros. A cor da pele, mais especificamente a preta, é um caso. Um branco, quando atinge cargos altos na política é lembrado por suas ideologias, ou suas práticas. Um negro é lembrado como o presidente negro. Um jurista branco é chamado de jurista. Um jurista negro é chamado de jurista negro, ou de moreno escuro10. Deste modo, características que, em determinadas situações, são auxiliares, em outras se tornam principais.
A identificação como criminoso não é somente influenciada pela acusação do delito. Muitas vezes, os traços auxiliares é que são determinantes11. A análise conjunta dos filmes “Meu nome não é Johnny”, baseado na vida de João Guilherme Estrela, “Cidade de Deus”12, baseado na história de uma favela carioca, dominada pelo traficante Zé Pequeno e “Tropa de Elite”13 e, principalmente as reações dos espectadores aos seus dramas, ilustram bem este fato.
João Estrela, Zé Pequeno e muitos dos inúmeros mortos e torturados pelo Capitão Nascimento, em Tropa de Elite, vendiam drogas. O primeiro era branco e de família rica. Os demais negros e pobres. João vendia drogas com a meta de “torrar um milhão de dólares” e viajava para Europa de primeira classe. Zé Pequeno e os “aviõezinhos” viviam em barracos miseráveis e usavam o comércio ilícito como meio de sobrevivência. Enquanto o público aplaudia e ria com as execuções sumárias dos “vapores” e “soldados” do morro, comovia-se e chorava com o drama da prisão de João Estrela. No seu julgamento, o homem branco e de família rica sensibiliza e consterna a juíza, considerada “mão de ferro”, ao dizer:
Aí eu abri o jornal, tinha lá minha foto. Estava escrito lá: Bandido Johnny preso. Meu nome não é Johnny. Meu nome é João. Eu não sou bandido. Não sou nenhum Pablo Escobar. (...) Não queria que minha mãe tivesse aqui ouvindo isto. Eu uso droga desde moleque e nos tempos antes de ser preso, eu estava cheirando muito. Desculpa, mãe. Eu só queria falar pra senhora o que eu estou sentindo agora. Todo mundo tem sonhos na vida. Eu também tenho meus sonhos.14

Certamente, os negros moradores das favelas têm motivos mais fortes para participar de qualquer das atividades relacionadas ao uso de cocaína, que “torrar um milhão de dólares”. Seguramente, eles também possuem mães e sonhos. No entanto, público e os juízes vêem neles todos os traços auxiliares do status de traficante. É por isto que a violência em Tropa de Elite e Cidade de Deus não é dramática. É por esta razão que Johnny tem mais chances de êxito ao negar o apelido relacionado ao tráfico e dizer que não é bandido. Ele consegue deixar de ser traficante e volta a ser João Estrela. Zé Pequeno pode até deixar de ser Dadinho, como era chamado antes de se tornar traficante, mas dificilmente deixaria de ser Zé Pequeno.
Quando a rotulação é eficaz, acaba por impelir os resultados que prevê. Trata-se de uma profecia auto-realizadora. “Ela põe em movimento vários mecanismos que conspiram para moldar a pessoa segundo a imagem que os outros possuem dela”15. Se alguém é identificado como criminoso, espera-se que seja ocioso, que viva entre criminosos e que volte a praticar delitos. As oportunidades de empregos lícitos e aceitação em grupos não estigmatizados são, em conseqüência, duramente dificultadas. Sem empregos lícitos e companhias “recomendadas”, o rotulado vive ociosamente entre criminosos e, para sobreviver, volta a delinqüir.
A consolidação da carreira desviante ocorre, segundo o interacionismo, com o ingresso em um grupo desviante. Por um lado, há a identificação e solidariedade em relação ao desvio praticado e ao tratamento recebido dos não desviantes. Facilita-se, então, que se racionalize e justifique a prática, bem como que se elejam inimigos comuns, a serem responsabilizados pelo sofrimento do grupo. Por outro lado, a troca de experiências conduz ao aprendizado de como realizar o desvio com mais perfeição, potencializando os resultados favoráveis e diminuindo os riscos.
Assim, o jovem ladrão encontra-se com ladrões mais velhos, mais experientes, que lhe explicam como se livrar da mercadoria roubada sem correr o risco de ser apanhado. Cada grupo desviante tem um grande repertório de conhecimentos desse tipo, e o novo recruta aprende rapidamente.
Assim, o desviante que ingressa num grupo desviante organizado e institucionalizado tem mais probabilidade que nunca de continuar nesse caminho. Ele aprendeu, por um lado, como evitar problemas; por outro, assimilou uma fundamentação para continuar.16

7.2. Criação e Imposições de Regras.

Além de investigar o impacto da rotulação, os interacionistas procuram explicar como e quando as regras são feitas e impostas. Em primeiro lugar, é preciso existir um valor, um conceito ambíguo, genérico, compartilhado por determinada parcela da sociedade. Por exemplo, a saúde. Alguém precisa convencer os demais de que existe uma situação problemática, que põe em risco aquele valor, como por exemplo, os acidentes de trânsito.
Deste valor, necessariamente amplo, podem ser extraídas regras específicas, completamente distintas, para enfrentar as situações adversas. Da necessidade de proteção à saúde, enfrentando o problema do trânsito, pode-se inferir uma regra criminalizando o ato de dirigir após o consumo de álcool, ou outra proibindo a produção de veículos com capacidade para atingir determinada velocidade. O conflito entre os incontáveis valores e as diversas regras que podem ser extraídas deles é resolvido por complexas disputas de poder entre os grupos variados.
Conformada a regra específica, ela precisa ser imposta. A aplicação de uma regra, assim como a criação, é um empreendimento17 feito por pessoas e não decorrência natural de uma infração. Alguém precisa descobrir o desvio e entender que a sua apuração não será desvantajosa para si ou para a sociedade. Ainda no mesmo exemplo, existindo uma regra reprimindo a combinação de bebida e direção, pode parecer ao Estado que em determinado período do ano, a sua aplicação causará danos à economia, inibindo festas e o turismo. Diante disto, a tolerância a infrações pode ser intensificada ou reduzida, temporariamente, ou em determinado local.
Os criadores e os impositores de regras são os tipos de empreendedores morais18. Os primeiros são pessoas para quem as regras existentes são perturbadoramente insatisfatórias, no enfrentamento de determinado problema. A modificação é essencial para a salvação da coletividade e das próprias pessoas. A premissa básica é a de que eles sabem o melhor para os outros, ainda que os outros discordem. Qualquer semelhança com o discurso da prisão como tratamento não é mera coincidência.
Quando a cruzada pela nova regra é vencedora, ela é institucionalizada e surgem os impositores (polícia, promotores, juízes, diretores de unidades prisionais). Para os impositores, há dois interesses fundamentais na aplicação da regra. Primeiro, justificar a existência do seu trabalho e, segundo, manter o respeito dos outros envolvidos.
Para demonstrar a importância do seu ofício, o impositor precisa convencer a sociedade de que tem conseguido bons resultados, porém, por circunstâncias novas, o problema tende a se agravar, a menos que obtenha mais recursos. O discurso sobre o crime, em qualquer época da história da humanidade é exatamente igual: clamor por leis mais duras, mais punições e reforço do policiamento, sob o argumento de que a sociedade estaria se deteriorando. Não há qualquer diferença substancial entre a carta de um leitor a um jornal carioca, publicada há mais de quarenta anos, transcrita abaixo, e o senso comum dos dias de hoje.
Um fato que vem merecendo cada vez mais a atenção dos nossos governantes é o combate aos tóxicos, daí as sucessivas campanhas. Pena que isto só acontece quando ocorrem suicídios, crimes ou mortes suspeitas. O que me admira é as autoridades não terem, ainda, partido para medidas mais objetivas que poderiam reduzir em muito o consumo de drogas, principalmente entre os jovens de nossa tão deteriorada sociedade, os quais serão, um dia, dirigentes da nação.
(...)

Claro que, para o sucesso da operação dela teriam que fazer parte o abominável período de incomunicabilidade, após a prisão e o enquadramento dos culpados na Lei de Segurança Nacional, com penas bem rigorosas, já que a proliferação dos tóxicos poderá, amanhã, atentar contra ela19.

A busca pelo respeito, muitas vezes, condiciona a própria repressão mais que o próprio delito. O impositor pretende manter a superioridade dele em relação ao desviante. Qualquer tipo de contestação ou menosprezo à sua autoridade, aos seus ritos, ou à própria norma que ele impõe pode ser o fato decisivo para a seleção do rotulado, ou para a medida da reação contra ele. Desta maneira, o músico Lobão descreve o seu próprio julgamento, onde não chorou, ou falou da família, ao contrário de João Estrela.
O Meritíssimo convoca a primeira testemunha, o Ricardo, que atuou de acordo com o combinado pela estratégia de defesa: declarou ao juiz o meu suposto arrependimento. Na hora que ele começou a falar, não agüentei, foi mais forte que eu: levantei o dedo pedindo a palavra para contestar aquela afirmação: afirmei que, de forma alguma, não estava arrependido, muito pelo contrário, e não poderia admitir o Estado me tutelar. Logo de cara, percebi que o juiz não nutria muita simpatia pela minha pessoa.
(...)
E o nosso querido juiz levanta a voz e pergunta: ´O réu está a rir de quê?' ' Nada, Excelência, estou muito cansado, estava meio sonolento e acabei dormitando; devia estar sonhando com alguma coisa engraçada. ´ E, sem transição, nosso emérito magistrado sapeca pro escrivão: ´ Corrige aí: o réu não tem má personalidade, o réu tem péssima personalidade!´ Não me contive e retruquei: ´ Puxa, pensava que isso aqui fosse um julgamento, e não um consultório psicanalítico. ´ E novamente, sem transição, nosso impávido juiz dispara batendo o martelo: ´ O réu está condenado a um ano de prisão, sem direito a sursis20
A escassez de recursos e a impossibilidade de cobrir todas as infrações a todas as regras específicas levam os impositores a estabelecer prioridades entre as regras a fiscalizar. Além disto, há que se escolher o momento de agir ou de se omitir e as pessoas contra quem agir ou se omitir. São criados critérios próprios, que, às vezes, estão aquém, mas às vezes vão além dos estabelecidos.
A polícia elege o que investigar, o promotor o que acusar e o juiz o que julgar e condenar. Na escolha, entram fatores como a possibilidade de êxito nas investigações ou acusações. Esta possibilidade é influenciada pela facilidade na colheita das provas, pelas chances de as falhas probatórias serem convenientemente toleradas pelos julgadores e pela possibilidade de reação do alvo. Entram em cena os estereótipos, caracterizados pela adesão ou não dos status principais e auxiliares dos criminosos. Também são moedas do jogo o poderio econômico e político, além do acesso formal e informal aos julgadores.

 Quando fui fazer a sentença, veio à cabeça uma dúvida não aventada pelas partes: se a moto foi subtraída com a intenção de apenas garantir a fuga, já que ela foi encontrada intacta e devolvida logo depois, seria justo condená-lo por isso? Não seria essa segunda pretensa subtração caso de post factum impunível e que não foi levantada pela defesa em razão do despreparo técnico do defensor dativo? Ou seria arrependimento eficaz?
Ainda inexperiente e inseguro, faltou coragem para rechaçar a pretensão do Ministério Público naquele momento, pois temia um possível apelo e a reforma da sentença pelo tribunal, que tinha uma linha muito dura nesses casos. Aí se deu meu erro: fui me aconselhar sobre a existência do post factum impunível logo com quem? Com o amigo e combativo promotor de justiça, que também chamamos de Parquet. Obviamente, como era parte na causa ele reiterou sua tese e procurou rechaçar as teses de crime continuado e de post factum impunível. Destacou que o acusado era  reincidente e que também respondia por um furto cujo interrogatório já estava aprazado.  
Informalmente, e sem perceber, aquele diálogo com o Parquet  terminou sendo mais importante para a  formação de um juízo sobre o destino da causa do que a leitura fria das razões das partes.21


Um fato que costuma gerar atrito entre os cruzados morais22 criadores das regras e os impositores é quando aqueles descobrem as interferências e a seletividade destes. Nesse momento, a inércia da polícia, da justiça ou do governo é apontada como causa para a persistência do problema. Então, finalmente, florescem as teses de que temos ótimas leis, mas elas não são aplicadas.


1 ZÉ, Tom. Profissão de Ladrão.
2 Também chamado de Interacionismo, ou Teoria da Rotulação Social.
3 Para simplificar, e sem disfarçar a ironia, etiquetaremos de interacionistas todos os teóricos do Labeling Approach, interacionismo ou Rotulação Social.
4 RIBEIRO, João Ubaldo.Viva o Povo Brasileiro. Ed, Objetiva. Rio de Janeiro, 2007. P.37.
5 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.21-22.
6 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.35.
7 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.41
8 AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P.141-142.
9 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.42
10 Neste ponto, vale lembrar a declaração de um Deputado brasileiro sobre o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa:
“O ex-governador de Mato Grosso e deputado federal Júlio Campos (DEM-MT), em reunião da bancada do partido na Câmara, referiu-se ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, como "moreno escuro". Ao criticar a eficácia do foro privilegiado destinado às autoridades no país e defender a manutenção de prisão especial para autoridades, o deputado fez menção ao ministro.
- Todo mundo sabe que essa história de foro privilegiado não dá em nada. O nosso amigo Ronaldo Cunha Lima precisou ter a coragem de renunciar ao cargo para não sair daqui algemado. E depois, meus amigos, você cai [sic] nas mãos daquele moreno escuro lá no Supremo, ai já viu - disse o deputado em reunião da bancada. Questionado sobre o assunto, o deputado disse ter esquecido o nome do ministro e citou-o como moreno escuro, porém sem nenhuma maldade. “

Deputado Júlio Campos chama Ministro do STF de ´moreno escuro´. Disponível em http://oglobo.globo.com/pais/mat/2011/03/22/deputado-julio-campos-chama-ministro-do-stf-de-moreno-escuro-924066964.asp . Acesso em 02 de novembro de 2011.
11YOUNG, Jock. A sociedade excludente- Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro. Revan: 2002.p.74

“Mas é talvez a seletividade ou “amostragem” aumentada em relação a clientes prospectivos que se torna mais interessante. No tocante à suspeita, a polícia deixou de suspeitar de indivíduos e passou a suspeitar de categorias sociais. Por exemplo, quanto a parar e revistar: é mais efetivo suspeitar das categorias mais propensas a cometer infrações (e.g. Negros, irlandeses, homens jovens da classe operária) do que suspeitar de indivíduos.”
12 CIDADE DE DEUS. Direção: Fernando Meirelles.Produção: Andréa Barata Ribeiro e Maurício Andrade Ramos. Roteiro: Bráulio Montovani. Intérpretes: Mtheus Nachtergaele, Leandro Firmino da Hora, Alexandre Rodrigues, Jonathan Haagensen, Phelipe Haagensen, Douglas Silva, Daniel Zettel e Seu Jorge. 1 DVD ( 130 min) O2 Filmes e Videofilmes, 2001
13 TROPA DE ELITE-Missão dada é missão cumprida. Direção: José Padilha.Produção: Marcos Prado e José Padilha. Roteiro: José Padilha, Rodrigo Pimentel e Bráulio Montovani. Intérpretes: Wagner Moura, André Ramiro, Caio Junqueira, Milhem Cortaz, Fernanda Machado, Maria Ribeiro e Fábio Lago. 1 DVD ( 116min) Universal Studio, 2008
14 MEU NOME NÃO É JOHNNY. Direção: Mauro Lima. Produção: Mariza Leão. Roteiro: Mariza Leão e Mauro Lima. Intérpretes: Selton Mello, Cléo Pires, Júlia Lemmertz, Cássia Kiss. 1 DVD (MIN). Atitude Produções, 2008.
15 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.44
16 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.49
17 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.129
18 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.153
19 Jornal do Brasil, 10 de junho de 1979. Carta do leitor Sérgio Rocha, do Rio de Janeiro.
20 LOBÃO e TOGNOLLI, Cláudio. 50 anos a mil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. p.313-315
21 TOSCANO JÚNIOR, Rosivaldo. Nosso Rol secreto de arrependimentos. Disponível, em http://www.rosivaldotoscano.com/2011/01/nosso-rol-secreto-de-arrependimentos.html . Acesso em 27 de novembro de 2011.
22 BECKER, Howard, Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Tradução Maria Luiza X. De Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p.153

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