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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Mito da Modernidade 4. Fábrica de Marginais


Continua aqui a série " O Mito da Modernidade. A Execução penal brasileira e a criminologia". É a publicação, em partes do artigo com o mesmo nome. Tentarei postar um capítulo, ou parte de capítulo (caso ele seja muito grande), por semana.
Posts anteriores (para ler, é só clicar):
O texto integral foi publicado no livro "Redesenhando a Execução Penal 2- por um discurso emancipatório democrático". Quem tiver vontade e condições financeiras, pode comprá-lo aqui. Eu recomendo, pois há textos de outros 12 autores e prefácios de Alexandre Morais da Rosa e Raul Zaffaroni, que são, obviamente, muito melhores que este. Abraços!:

O MITO DA MODERNIDADE. A Execução penal brasileira e a criminologia.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As Faces da Moeda. Caminho para o Positivismo2.1. Iluminismo. 2.2. Escola Clássica. 3. Cara de Bandido. O Positivismo. 4. Fábricas de Marginais. Escola de Chicago. 5. Se não Tivesse, não Estaria Aqui. Anomia. 6. Sociedades de Esquina. Subculturas Delinquentes. 7. Meu Nome não é Johnny. Labeling Aproach7.1. Status Desviante. 7.2. Criação e Imposições de Regras. 8. Execução Penal Brasileira.8.1. De Olhos Fechados. Labeling Aproach e Execução Penal Brasileira. 8.2. Sociedades de Cativos. Subculturas e Execução Penal Brasileira. 8.3. Da Inovação ao Conformismo. Anomia e Execução Penal Brasileira. 8.4. Pobreza, a Falta Grave. Escola de Chicago e Execução Penal Brasileira. 8.5. É somente Requentar e Usar. Positivismo e Execução Penal Brasileira. 9. Conclusão.


    1. FÁBRICAS DE MARGINAIS. ESCOLA DE CHICAGO

Quando, seu moço
Nasceu meu rebento
Não era o momento
Dele rebentar
Já foi nascendo
Com cara de fome
E eu não tinha nem nome
Pra lhe dar.1

A industrialização, a expansão populacional e o crescimento das grandes cidades apresentaram consequências. Os contatos interpessoais se espalharam no espaço e, por conseguinte, as alternativas de conduta também. Ao mesmo tempo, a sensação de anonimato aumentava. As instâncias de controle informal, como família, religião e comunidade perderam força.
Nesse contexto, a cidade de Chicago do início do século XX era paradigmática, pelo potencial fabril e por ser polo atrativo de imigrantes das mais variadas nacionalidades. Lá, consolidou-se um núcleo de pesquisas, batizado de escola de Chicago, ou Ecologia Criminal, que visava contraditar as explicações positivistas acerca das origens do delito em aspectos pessoais.
Para tanto, usaram como base a teoria das zonas concêntricas de Park e Burgess. Eles notaram que Chicago, assim como a maioria das cidades norte-americanas, tinha um formato radial, onde no centro (loop) estavam as fábricas e o comércio. A segunda zona, (Slum) era sempre invadida pelo loop e, por isto, bastante degradada. Tratava-se da única opção de moradia para os mais pobres e os imigrantes recém-chegados. A partir daí, quanto mais se afastava do centro, mais organizada era a região e mais ricos os seus habitantes.2
Partindo da hipótese de que a distribuição da criminalidade era desigual, os cânones da Escola de Chicago, Clifford Shaw e Henry McKay verificaram os documentos da polícia, de 1900 a 1940, em mais de 60.000 casos individuais.3 Era exatamente naquela segunda zona que se concentrava quase a totalidade dos delitos conhecidos pelo Estado.
As áreas de delinquência eram as mais fisicamente degradadas. As ruas eram mais sujas, as casas menores e feias, as condições sanitárias piores, o acesso à saúde precário, as escolas com pior estrutura e qualidade. A população, porém, era rotativa, seguindo as ondas migratórias. Um grupo chegava e lá permanecia até conseguir progredir financeiramente e mudar para as zonas melhores. Assim, chineses, negros e europeus se alternavam como seus habitantes.
As taxas de criminalidade mantinham-se estáveis, independente dos ocupantes de cada momento. Se considerarmos que as pessoas (e suas heranças genéticas) variavam, é fácil concluir que os desvios, constantes, só poderiam ser fruto da outra constante: a degradação. Era (ou deveria ser) uma ferida de morte nas teorias lombrosianas.
Escapava à Escola de Chicago, entretanto, o fato de que as estatísticas oficiais, em que basearam a suas pesquisas não refletiam a realidade. Desconhecia-se, na época, o conceito de cifras ocultas. Também não se falava sobre a abordagem diferenciada da polícia em cada região, concentrando seus esforços em umas e imunizando outras.
Apesar de radicalmente opostos ao determinismo biológico dos positivistas, os estudiosos da Escola de Chicago criaram outra espécie de determinismo, o ecológico. Associaram o crime, genérico, à pobreza, à falta de educação e à ausência das famílias, por exemplo, quando alguns delitos exigem riqueza e boa instrução (como os tributários) ou ocorrem, não raramente, dentro das famílias (como os delitos sexuais e os homicídios).
Como consequência, ao pregar o combate à pobreza, o seu discurso serviria de baliza para ações violentas contra as próprias populações marginalizadas. Assim como para os positivistas a intervenção no criminoso se justificava para curá-lo de um problema individual cujas consequências ele não poderia evitar, a intervenção contra pessoas pobres é justificada para curar a comunidade em si de um mal, cujas consequências elas não poderiam evitar.
Nos Estados Unidos surgiria, e depois se espalharia pelo mundo, a política de Tolerância Zero. Baseava-se em parte da teoria das janelas quebradas4, com forte inspiração na Escola de Chicago, segundo a qual as pequenas desordens, como uma janela quebrada, ou uma pichação estimulariam as grandes desordens e os crimes violentos.
Segundo, no nível comunitário, desordem e crime são intrinsecamente ligados, em um tipo de sequência de desenvolvimento. Psicólogos sociais e policiais tendem a concordar que se uma janela em um prédio for quebrada e deixada sem concerto, todas as outras janelas logo serão quebradas5.

Seria necessária uma dura e inafastável repressão às pequenas desordens praticadas pelas populações carentes e que, muitas vezes, eram a sua única fonte de sobrevivência, como a prostituição, o comércio informal e, principalmente, a venda e o uso de drogas.
Essa política é profundamente discriminatória, visto que se assenta numa equivalência entre se comportar fora da norma e ser um fora-da-lei, e tem como alvo os bairros e populações suspeitos de antemão, se não considerados culpados por princípio, por deficiências morais, bem como por infrações legais.6
Mais recentemente, no Brasil, nova política claramente inspirada na Escola de Chicago e também na teoria das janelas quebradas, originaria as Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro e suas cópias, em outros Estados. O projeto original foi implantado pelo governador que chamou uma favela carioca de fábrica de marginais.
Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal. Estado não dá conta.7

Trata-se, em resumo, da ocupação militar de regiões consideradas violentas (e, não por acaso, próximas de redutos turísticos8, como o Copacabana, no Rio de Janeiro, ou a Barra, em Salvador), associada à oferta de infra-estrutura até então inexistente.
Uma engenhosa arquitetura publicitária se esforça para omitir o fato de que a entrada da PM, e não raro do exército, obviamente é violenta e pouco controlada pela lei. São instaladas bases policiais cujos agentes intervêm em todos os detalhes do cotidiano e atacam, como na tolerância zero, os meios de sobrevivência dos marginalizados.
Tudo isso nos leva ao ponto final do que eu chamo de gestão policial da vida, imposta aos pobres em seu cotidiano, comprovando aquelas teses, como a de Loic Wacquant, que apontam o deslocamento da atenção social do Estado para uma gestão penal da pobreza. Nunca a expressão de Edson Passetti se adequou tanto à realidade dos bairros pobres e favelas: o controle a céu aberto, naquela perspectiva do estado de exceção de Agamben. A idéia de “campo”, área de controle penal total sobre o cotidiano de seus moradores, agora tutelados em todos os aspectos diretamente pela polícia. Tendo a pacificação do Alemão como ato simbólico de um projeto de cidade, a mídia carioca investiu ardilosamente na policização da vida em seus mínimos detalhes, tendo o BOPE como o grande timoneiro.
(...)
Nesses anos todos de reflexão sobre a questão criminal eu já tinha me dado conta da necessidade de manter um inimigo à mão na passagem da ditadura para essa democracia formal em que vivemos. Constatei também a importância do medo para o disciplinamento dos pobres no capitalismo de barbárie. Falei anteriormente do deslocamento de uma naturalização da truculência policial para o seu elogio; isso é o mais assustador dos tempos em que vivemos.9

A associação de crime e pobreza, sem questionamentos de ordem política e econômica, leva a uma política não de auxílio, mas de guerra aos pobres, como demonstra o papel central dos militares, a utilização do exército e o uso de expressões bélicas. Ademais, a condição de marginalidade passa a servir como indício de culpa no processo penal e, ironicamente, para uma teoria que tentou refutar o positivismo, como sinal de periculosidade, na execução da pena.

1 HOLANDA, Chico Buarque de. O meu Guri.
2 A estrutura espacial das grandes cidades brasileiras, atualmente, é bastante diferente. Nem sempre a estrutura é radial. Muitas vezes, bairros ricos e pobres se alternam e as periferias costumam ser os locais mais degradados. O importante da pesquisa, porém, é delimitar espaços notadamente distintos, onde há maior ou menor degradação e as diferenças na distribuição da criminalidade entre eles. Podemos perfeitamente transpor a descrição do Slum, para zona leste de São Paulo, os morros cariocas, as favelas das capitais nordestinas, onde se concentram os imigrantes e pobres em geral.
3 DIAS, Jorge Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa Andrade. Criminologia- O Homem Delinqüente e a Sociedade Criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 1995 , p.276.
4 YOUNG, Jock. A sociedade excludente- Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro. Revan: 2002.p.188.
Não quero fazer aqui uma crítica desta filosofia; estou dizendo que isto não é um programa de tolerância zero contra todo o tipo de crimes, que acredita que a polícia é o ator chave na criação de uma sociedade ordeira e que acha que a ‘limpeza nas ruas’vai produzir resultados miraculosos e imediatos. Trata-se de uma teoria mais sutil, que prevê um papel mais marginal para a polícia e situa a fonte da ordem social em partes mais fundamentais da estrutura social.”
5 WILSON, James Q. e KELLING, George L. Broken Windows. Tradução livre. Disponível em http://www.forestry.gov.uk/website/pdf.nsf/b591cb1aa3d9d9ac802570ec004f557d/7e15282335cea36b802575e4004c96b7/$FILE/BrokenWindowTheory.pdf , acesso em 28 de outubro de 2011. Original publicado no jornal The Atlantic, em março de 1982. Texto original:
Second, at the community level, disorder and crime are usually inextricably linked, in a kind of developmental sequence. Social psychologists and police officers tend to agree that if a window in a building is broken and is left unrepaired, all the rest of the windows will soon be broken.

6 WACQUANT, Loic. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [ A onda punitiva].3.ed. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2003. P.442
8 CASAGRANDE, Ferdinando. O Mapa da Batalha entre polícia e traficantes pelo controle da favela. Disponível em http://veja.abril.com.br/infograficos/batalha-no-rio/ .Acesso em 29 de outubro de 2011.
9 BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é mais complexo. Disponível em http://www.fazendomedia.com/o-alemao-e-mais-complexo/ acesso em 29 de outubro de 2011.

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